A criação do Programa “Porto com Sentido” foi discutida esta segunda feira, dia 18 de Maio, na Assembleia Municipal do Porto, tendo sido aprovada com os votos a favor do grupo ‘Rui Moreira: Porto, o Nosso Partido’ e do Partido Socialista, contando com a abstenção do Partido Social Democrata e os votos contra do Bloco de Esquerda, da Coligação Democrática Unitária e do Partido Pessoas-Animais-Natureza. Este programa, uma iniciativa do executivo de Rui Moreira apresentada como uma resposta inovadora à crise habitacional na cidade, tal como está desenhado, vai continuar a deixar de fora muitos milhares de famílias do Porto.
A gravidade da situação na cidade do Porto vai muito para além do número de pedidos existentes na Domus Social (mais de 1.100) ou das 2.094 famílias em carência habitacional indicadas pelo Município em resposta ao inquérito do IHRU, sendo também resultado da demolição, nos primeiros anos do séc. XXI, de mais de 1.000 fogos camarários, da venda de mais de 300 prédios municipais no mandato de Rui Rio, ou da subida das rendas que forçaram quase 100.000 pessoas a deixar a cidade.
Para além da recém criada primeira Lei de Bases da Habitação, é de relevar, entre os novos instrumentos legais, o Decreto Lei n.º 37/2018 de 4 de Junho (referente ao Programa ‘1º Direito’), que surgiu de iniciativas parlamentares de várias forças políticas (projetos de Resolução do BE de 07/07/2016, do CDS-PP de 28/12/2016, do PSD em 30/12/2016 e do PCP em 02/01/2017, todos sobre necessidades de alojamento no país). Pela primeira vez na história da política habitacional do país, foram previstas respostas específicas para pessoas em situação de sem abrigo e novas formas de intervenção municipal - como a aquisição de prédios e frações habitacionais ou o arrendamento para subarrendamento por um prazo inicial mínimo de cinco anos.
É certo que o financiamento do Estado para os diversos programas habitacionais não é ainda suficiente face à gravidade da situação em concelhos como o do Porto, motivo pelo qual o Bloco de Esquerda tem lutado por um financiamento mais robusto por parte da administração central, com vista à concretização do artigo 65.º da Constituição. Mas à situação grave que já se vivia, juntaram-se agora as consequências económicas e sociais da pandemia da Covid-19, pelo que, como em muitas outras grandes cidades, o Porto tem que responder às enormes quebras de rendimento das pessoas e ao crescimento do desemprego e da precariedade laboral, que dificultam ainda mais o acesso a uma habitação digna.
As propostas políticas do executivo camarário estão claramente aquém da crise da habitação que se vive na cidade do Porto. São necessárias políticas que combatam a especulação imobiliária e a utilização de fogos habitacionais como “ativo imobiliário” pelos privados, flagelo que se tem traduzido na expulsão de moradores das zonas mais centrais da cidade. São necessárias políticas que não reproduzam, dentro de 3 anos - tempo do programa apresentado pelo Executivo -, a segregação espacial dos últimos anos e novas dificuldades de acesso à habitação. São necessárias políticas que elevem a população da cidade, pelo que é imprescindível a construção de 1.000 novas casas, que reponham pelo menos o parque habitacional destruído.
O programa “Porto com sentido” não é, desde logo, resposta para as mais de mil famílias que estão na lista de espera da Domus Social, ou para as famílias que estão na lista de espera para a lista de espera ou ainda para as famílias que, por não se enquadrarem nos critérios para inscrição na Domus Social, não constam da lista de habitantes com carências neste domínio, quando o são. Todas estas pessoas irão ficar de fora do programa, todas vão continuar à espera. Receamos, aliás, que as pessoas que acederem ao arrendamento através deste novo Programa, estarão simples e objetivamente a servir para que a Câmara do Porto assegure durante três anos a rentabilidade dos “ativos imobiliários” de proprietários privados, permanecendo sem qualquer perspectiva relativamente ao que virá depois.
Por todas estas razões e em linha com o que vimos defendendo, o Bloco de Esquerda apresentou, na Assembleia em causa, uma proposta de recomendação ao executivo no sentido de que venha a alterar alguns dos aspetos do Programa apresentado e de que se comprometa já com respostas de emergência no que toca à habitação.
Concretamente, apresentámos como propostas:
a) a revisão das Condições Gerais do programa “Porto com Sentido”, de forma a que:
:: os fogos considerados no Programa sejam enquadrados com o prazo inicial mínimo de 5 anos, conforme previsto no PRA e no 1º Direito;
:: os valores máximos de renda a pagar pelo Município sejam calculados com base em regime de preços mais baixos do que o estabelecido pelo PRA (e previsto no 1º Direito);
:: possa ser adotado como critério de preferência a atribuição de fogos a famílias que residam na respetiva zona há mais de 5 anos, que daí tenham sido despejadas recentemente ou que de tal se encontrem em risco iminente;
:: não seja impedido de tomar o subarrendamento de uma habitação quem possa estar “a usufruir de apoios financeiros públicos para fins habitacionais” (art.º 29.º, b)), podendo, sim, substituir um apoio pelo outro.
b) que, paralelamente a este programa:
:: Considerando o cronograma de implementação da ELH, se proceda à antecipação com carácter de emergência das restantes medidas previstas, por forma à sua execução até 2023 (como a reabilitação das Ilhas para fins habitacionais);
:: Sejam, ainda em 2020, criadas outras respostas habitacionais, no sentido de garantir às pessoas em situação de maior vulnerabilidade - e cada vez em maior número - o acesso à habitação (disponibilizando e convertendo edificado municipal, mobilizando património do Estado central, implementando o Housing First, entre outras);
:: Sejam desenvolvidos os procedimentos para iniciar, ainda em 2020, a construção de 1.000 novas habitações municipais.
A proposta do Bloco de Esquerda não foi aceite para votação, tendo sido invocadas questões regimentais sem apoio na legislação autárquica. Na verdade, o nº 3 do artº 25º da Lei nº 75/2013 dispõe que apenas “não podem ser alteradas na assembleia municipal as propostas apresentadas pela câmara municipal referidas nas alíneas a), i) e m) do n.º 1 e na alínea l) do número anterior” (nenhuma das quais se aplicava neste caso), “sem prejuízo de esta poder vir a acolher em nova proposta as recomendações ou sugestões feitas” pelo órgão. Contra tal entendimento, que enfraquece o funcionamento democrático das assembleias municipais, o Bloco de Esquerda tomará as medidas adequadas.
Se por um lado nos congratulamos com o facto de que, finalmente, este executivo assume que as casas que têm estado entregues ao Alojamento Local servem afinal para habitação - depois dos últimos anos de insistência do executivo de Rui Moreira de que aquelas eram casas que estavam anteriormente vazias e que não teriam servido para a resposta habitacional necessária e urgente na cidade - ao mesmo tempo, com este Programa, Rui Moreira não está sequer a tirar um coelho da cartola: está a vender gato por lebre.
O Porto com Sentido está claramente associado à opção apressada e a raiar o anti democrático deste executivo de eliminar zonas de contenção ao Alojamento Local na cidade, sendo uma estratégia de negócio que favorece os proprietários privados - cedendo às pretensões da Associação do Alojamento Local em Portugal - e descura as famílias, especialmente as que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. O mercado sozinho está a ditar preços abaixo dos que se apresentam neste Programa, estando assim a Câmara do Porto a criar uma referência na cidade que é pior para as pessoas.
A escolha pelo Executivo municipal - de entre as várias possibilidades de políticas de acesso à habitação ao seu dispor - de um programa de arrendamento acessível (PRA) com renda 20% inferior ao valor de referência do preço de renda (VRPR), tem uma marca de desprezo pelos milhares de famílias do Porto sem casa digna, não é suscetível de trazer à cidade muitos dos que dela foram forçados a partir, e não contribui para a construção da cidade de amanhã, da cidade do futuro que as consequências da Covid-19 já nos exigem: uma cidade onde ninguém fica para trás e em que é o interesse público a comandar. Impõem-se por isso escolhas corajosas do Município. As respostas que têm sentido hoje, são as que garantem um Porto com Futuro.