Reabilitar não pode ser sinónimo de descaracterizar

"O Bolhão não é para turistas", anunciava com firmeza a Câmara Municipal do Porto em fevereiro de 2018 (no jornal da autarquia que mostro na fotografia). Quase uma década depois, essa promessa soa, para muitos, como um slogan traído pela realidade.

O Mercado do Bolhão sempre foi mais do que um simples espaço de comércio. É, ou era, um coração pulsante do Porto — lugar de pregões, de peixe fresco, de cheiro a terra molhada nas bancas de legumes, de vizinhança e quotidiano. Um mercado da cidade e para a cidade. Mas a sua reabertura em 2022, após anos de obras e um investimento milionário, trouxe um espaço limpo, sim, mas também socialmente higienizado - e por isso mesmo uma crescente sensação de que a sua alma ficou à porta.

Com uma estética modernizada e um regime de gestão exageradamente regulado, sem a conveniente participação dos comerciantes, o “novo” Bolhão parece projetado para agradar a um tipo específico de olhar: o do visitante. As bancas de frescos ainda existem, mas são agora vizinhas de espaços que vendem conservas gourmet, souvenires ou cafés conceptuais. A estrutura, que outrora gritava autenticidade, tornou-se mais silenciosa — não só porque os pregões foram substituídos por música ambiente e tilintar de copos, mas porque muitos dos seus antigos vendedores desistiram, desalojados pelas regras ou pelo custo de se manterem ali.

A promessa feita pela autarquia de que o mercado não seria capturado pela lógica turística é hoje, no mínimo, ambígua. Sim, há uma tentativa de equilibrar: alguns lugares continuam a vender produtos locais, e ainda se veem senhoras de sacos de pano e listas de compras na mão. Mas é impossível ignorar que o Bolhão se tornou também um palco de encenação — da tradição transformada em produto, da cultura convertida em experiência “instagramável”.

Para muitos comerciantes, o problema não está apenas na estética, mas na gestão: sentem-se afastados do processo de decisão, sujeitos a fiscalizações rígidas e a regras que parecem mais condizentes com um centro comercial do que com um mercado popular. Não é por acaso que, em 2023, vários deles descreveram o novo Bolhão como “pior do que um shopping” revelando uma clivagem crescente entre a memória viva do mercado e o seu presente higienizado.

Este fenómeno não é exclusivo do Porto. Barcelona, Lisboa, Florença — muitas cidades europeias têm assistido à transformação dos seus mercados centenários em espaços turísticos, numa tentativa de capitalizar o "charme do autêntico". Também no Porto já tivemos, por responsabilidade de Rui Rio, o lamentável precedente do Mercado do Bom Sucesso. O problema? Ao tentar vender autenticidade, acabam por destruí-la, justamente por a transformarem numa mercadoria. Nesse aspeto, o novo Bolhão está em linha com a lógica da governação de Rui Moreira, cujo legado tantos reivindicam, de transformação de toda a cidade numa marca.

O Bolhão é um espelho da tensão entre o orgulho patrimonial tratado como resquício exótico de uma cidade que em grande medida já não é, e o pragmatismo económico que tem de responder a quem hoje habita o centro da cidade, isto é, muito mais turistas e muito menos classes populares. No Bolhão., exprime-se exemplarmente essa contradição entre a cidade vivida e a cidade visitada.

Requalificar não deveria significar descaracterizar. Preservar não é apenas manter a fachada, mas proteger a função social do espaço. A questão que se impõe, portanto, é simples: de quem é o mercado? Se for de todos, então que seja pensado com e para os que o vivem — e não apenas para os que o fotografam. Mas isso implica não apenas pequenos ajustes, mas uma outra estratégia de cidade, que faça regressar ao centro do Porto estudantes, classes populares, trabalhadores. Não haverá um Bolhão popular numa cidade que não queira sê-lo. E não haverá uma cidade popular sem políticas de habitação que contrariem a voragem do mercado.

Numa cidade que se torna produto, o cidadão transforma-se em figurante, para retomar a metáfora de Lídia Jorge a propósito da própria política. É isto que é preciso transformar. Para que o Bolhão não seja cenário, é preciso que o Porto não seja parque temático!

E essa é uma mudança e até uma rutura que é preciso fazer nas próximas escolhas eleitorais do Porto.